quinta-feira, agosto 29, 2002

CIDADE DE DEUS
Arnaldo Jabor
Quem não leu, tem que ler!!!

‘Cidade de Deus’ desmascara nossa crueldade

Não. “Cidade de Deus” não é um filme, apenas. É um fato importante, é um acontecimento crucial, um furo na consciência nacional. Fui ver o filme e saí modificado. Tenho a impressão de que esse filme não se diluirá como um espetáculo digerível. Nós não vemos esse filme; esse filme nos vê. Com essa epopéia da guerra dos miseráveis que nasceram no livro de Paulo Lins, sentimo-nos desamparados na platéia. Nossa vida de espectadores, com roupas e comidas, com namorada do lado, com pizza depois, ficou ridícula. “Cidade de Deus” faz balançar nossa sensação de “normalidade”. Não dá mais para acreditarmos apenas que o crime tem de ser combatido para que a “ordem” seja mantida. Destrói-se nosso “ponto de vista” e viramos uma platéia de culpados. Esse filme agrega uma descoberta à opinião publica do país que nunca mais poderá ser ignorada.

Enquanto a miséria era dócil, ninguém se preocupava com ela. Nossas empregadas surgiam de manhã, sumiam de noite, nossos faxineiros, copeiros e engraxates eram seres abstratos. Os pobres pareciam não ter vida interior. Podíamos romantizá-los, rir deles, paternalizá-los, tudo. Mas, a TV, a comunicação democratizante do consumo fez surgir uma massa miserável, mas desejante. Pulsa nos bailes funk uma brutal corrente de expressão, a violência como fome e linguagem. A indústria cultural estimulou o desejo, e a cocaína e o tráfico de armas trouxeram os meios para sua possível realização.

Depois que a cocaína despejou milhões de dólares sobre o mundo da miséria, o contentamento letárgico da exclusão virou fome de consumo, a aceitação da escravidão disfarçada de “emprego” virou uma invasão do país “branco”. Não é mais inferioridade; é diferença. Agora, é pau a pau. Existimos nós e eles. Um outro mundo está aparecendo, não como decadência ou ameaça, mas como sinistra cultura, pavorosos valores, tudo sob o manto sombrio da morte.

Estamos enfrentando agora a morte no olho.

A tragédia das periferias brasileiras sempre foi um terremoto ignorado, para o qual ninguém enviou patrulhas de salvamento. Já houve um terremoto e todos nós tentamos esquecê-lo, subindo grades em nossas casas, com os socialites cheirando o pó malhado de otários e perpetuando essa miséria. Sempre tivemos uma consciência epidérmica dos problemas do crime. E só sabíamos dizer “Que horror!”, mas esse filme nos faz entrar dentro dos lamaçais, dentro das chacinas, dentro de tudo que sempre detestamos ver. “Cidade de Deus” não é o retrato condoído das favelas; não tem um só traço de sentimentalismo. Ele é também o nosso retrato, a 24 quadros por segundo, com nossos rostos aparecendo por trás dos meninos de 10 anos se matando com metralhadoras e fuzis. Ali estão visíveis todas as pistas de nosso caos, que levam à sordidez de nossas classes dominantes, às mentiras políticas, às falsas bondades, aos retóricos ideais nacionais. O filme prova nosso despreparo para resolver as tragédias sociais, mesmo que houvesse vontade política. O filme não conta o que aconteceu; o filme mostra o que está acontecendo agora, sem parar, enquanto lhe assistimos ou lemos estas linhas.

O filme nos revela que houve uma “mutação social”, ética, física.

Ao sair do cinema, tive vontade de gritar nas ruas: “E aí? Ninguém vai fazer nada? Há milhares de crianças se matando e vamos continuar falando em criminalidade como um caso de polícia?” E logo depois penso: “Fazer o quê? Com que verbas, com que bilhões de dólares, com que vontade política, com que aparelhos do Estado, se o Estado está sendo tragado para dentro da miséria armada?” Os fatos estão mais adiantados que a lei. Não adianta esta eterna guerra triste de policiais mal pagos e corrompidos (justamente) contra miseráveis lutando por existir. Aquelas crianças armadas estão acima do bem e do mal, sim. Precisamos de novos conceitos para entender este problema de Estado e da sociedade. Filme e fato são um retrato da sinuca de bico em que está o país todo. Em “Cidade de Deus”, o documento invade a ficção. Antes, havia uma “esperança” teórica; hoje há o absoluto impasse. Há 40 anos talvez houvesse uma solução higiênica, assistencialista. Hoje, não adianta mais o papo de luta de classes, de conscientização, cidadania. Eles já se “conscientizaram” sozinhos, em outra direção. Tarde demais, políticos egoístas; trata-se agora de um muro de chumbo, com raízes fundas. Quem vai resolver? Com que verbas, com que direito, com que poderes? E quem disse que eles ainda querem que nós os “salvemos”?

O filme de Fernando Meirelles, co-dirigido por Kátia Lund, é extraordinariamente bem produzido, bem dirigido, bem fotografado. Uma obra-prima; mas não se trata de dizer na saída: “Gostei ou não gostei”. Não se qualifica a descoberta de uma doença. “Cidade de Deus” fura as leis do espetáculo normal, trai a indústria cultural e joga em nossa cara não uma “mensagem”, mas uma sentença. Estamos condenados a viver com essa tragédia, ela vai continuar crescendo como um tumor e não estamos preparados para curá-lo, porque fazemos parte dele, com a polícia vendida, a lei vendida, os negociantes envolvidos, aqui e nas fronteiras.

Esse filme vai ser visto pelo país todo, num terror fascinado. Creio que vai provocar mudanças na conduta política, pois faz parte de um processo de conscientização que ninguém pode mais deter, dentro e fora do cinturão da miséria. Qualquer projeto nacional teria de passar prioritariamente pela salvação das periferias. Infelizmente, os “projetos nacionais” chegam sempre depois.

“Cidade de Deus” já foi vendido para o mundo todo. Será um sucesso planetário e vai revelar para sempre nosso segredo: somos um dos países mais cruéis do mundo. “Cidade de Deus” mostra que o inferno é aqui, atrás de Ipanema ou dos Jardins. Esse filme nos desmascara para sempre.

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